12 de Junho de 2013
3:47 PM
O sino da porta soou alegremente, anunciando a entrada de mais um cliente no café Três Pinheiros. André desviou a atenção do balcão sujo para observar quem acabara de entrar no estabelecimento. A menina loira carregava um largo sorriso que fez um quase tão grande quanto o dela abrir-se no rosto de André. Aquela era Catarina. Ela costumava frequentar o café religiosamente, desde que se mudara no começo do ano. Mas ela geralmente estava sozinha. Naquela tarde, André logo notou, Catarina era acompanhada por um garoto – garoto não, homem, de uns 20 anos – que tinha duas vezes a massa corporal de André. O sorriso de André vacilou um pouco. Ele vinha reunindo coragem para falar com ela havia seis meses, desde que o sino da porta anunciara sua presença pela primeira vez. Talvez seja o irmão dela, ele se reconfortou, enquanto ia para a cozinha, embora soubesse lá no fundo que estava apenas mentindo para si mesmo.
[…]
12 de Junho de 2014
4:06 PM
Quando Catarina entrou no Café naquele Dia dos Namorados, André estava terminando de embrulhar um pedaço do bolo preferido de sua mãe. Agora ele tinha dezesseis anos e a cabeça ligeiramente mais madura do que no ano interior, e seu coração quase não palpitou ao observar os dedos finos de Catarina entrelaçados aos de algum outro cara qualquer, tão magro e de cabelos tão vermelhos quanto um fósforo aceso. Ele quase não se importou ao notar a expressão aflita de Catarina, como a mão livre dela torcia cachos nervosamente no cabelo loiro. Ele continuou embrulhando o bolo, como se nada estivesse errado, embora pudesse claramente ver – quase sentir – a tensão que se instalara no Café após a chegada do casal.
Ele continuou tirando o avental e arrumando sua mochila quando o tal do ruivo puxou a cadeira gentilmente para Catarina e ela respondeu com uma careta enfezada que só André viu. E continuou enrolando uma fita de cetim vermelha ao redor da caixinha do bolo quando escutou as vozes dos dois únicos clientes do local se alteraram, a de Catarina para um tom mais agudo e um tanto quanto desesperado, e a do acompanhante embargar-se. Ele só parou, de fato, quando se direcionava para a saída e um corpo tão grande quanto o seu chocou-se rispidamente contra ele, logo após um arrastar de cadeira que André tentara ignorar.
Ele parou em silêncio, observando o cabeça de fósforo sair do Café com os punhos cerrados. O bolo que ele embrulhara com tanto capricho agora remanescia amassado no chão, então ele largou sua mochila em qualquer lugar e foi buscar um pano para limpar a bagunça. Ele limpou o chão com a costumeira atenciosidade que ele aplicava em tudo aquilo que fazia. Embrulhou um novo pedaço de bolo – o último – com o mesmo cuidado anterior, e já ia saindo da cafeteria, a mochila pendurada em um dos ombros e o pedaço de bolo em uma das mãos, mas não pôde ignorar a figura pequena e exageradamente loura que tinha a cabeça enterrada nas mãos. Por mais que seu cérebro gritasse, implorasse para que ele continuasse andando até a saída, suas pernas prontamente ignoraram sua súplicas e deram meia-volta em direção a única cliente do estabelecimento.
“Você está bem?” ele perguntou, parando ao lado da mesa. A menina levantou a cabeça e esfregou o nariz vermelho com a manga da jaqueta jeans. Os enormes olhos castanhos estavam vermelhos e molhados, mas ela balançou a cabeça para cima e para baixo.
Ela está bem, falou para si mesmo. Sua mãe está esperando por você. Mas mais uma vez seus próprios membros o desobedeceram. Ele colocou o bolo em frente à Catarina.
“Você deveria experimentar. É delicioso.” ela lançou-lhe um olhar duvidoso. “Por conta da casa.”
[…]
12 de Junho de 2015
9:25 PM
André escutou batidas na porta de vidro. A cafeteria estava mal iluminada, já que a única luz ligada era aquela bem acima da cabeça do menino. Ele parou de limpar o balcão e concentrou-se nos sons que o cercavam. Motores de carros, o zumbido da lâmpada amarelada, chuva batendo contra as telhas de metal. Sons aos quais ele estava tão acostumado que muitas vezes nem os notava. E então, mais batidas quebraram seu barulho quase silencioso.
Com um suspiro irritado, deixou sua tarefa incompleta e foi descobrir quem o perturbava àquela hora da noite. Ele já estava fazendo hora extra, não precisava de nenhum cliente espertinho achando que poderia driblar o horário de funcionamento do café. Ele levantou as persianas que tapavam o vidro bruscamente, e deu de cara com uma menina loira e miúda, os cabelos encharcados colando-se ao rosto também molhado. Ele piscou algumas vezes, tentando processar a imagem bem à sua frente.
Catarina bateu as palmas das mãos no vidro que os separava. Os lábios dela se mexeram freneticamente, a tempestade lá fora e a porta de vidro impedido que a sua voz chegasse até André. Ele piscou os olhos com força mais uma vez. Os lábios continuavam a se mover sem pausas. Um trovão soou lá fora e a menina tremeu inteira. Abra porta por favor abra a porta André abra a porta abra a porta abra a porta…
Ele destrancou a porta e Catarina despencou para dentro, abraçando-o apertado. Ela enterrou o rosto na camiseta vermelha dele e deixou as lágrimas escorrerem, assustada demais para formar palavras. André arrepiou-se, tanto por conta do toque quanto pelo fato de que a menina estava encharcada e congelando. Ele puxou-a para ainda mais perto e acariciou os cabelos dourados, apesar de eles pingarem água e embaraçarem mais a cada vez que ele corria os dedos por eles. Como um animal ferido, Catarina era uma massa de músculos tensos, e André a tratou como tal. Segurou-a com delicadeza firme, e aos poucos ela deixou-se acalmar.
“O que aconteceu?”, ele perguntou baixinho, sem soltar-se do abraço. Ela levantou a cabeça devagar, com vergonha de si mesma. Como pudera colocar-se numa situação como aquela? Como pudera deixar a situação chegar àquele ponto?
Ela o encarou, os olhos castanhos parecendo maiores do que nunca por conta das lágrimas. André segurou o rosto suave dela delicadamente em suas mãos. E então ele viu. O lábio cortado. A testa sangrando.
Um gosto amargo espalhou-se em sua boca. Ainda segurando a menina ferida, seu peito começou a subir e descer numa velocidade anormal. Uma sensação que ele nunca havia experimentado antes explodiu em seu peito – fogo ardente, consumindo de dentro pra fora.
Ainda sim, manteve a voz calma.
“Catarina… o que…”
“Um erro. Um erro. Eu devia ter saído antes. Eu devia ter ido embora na primeira vez.” ela limpou as lágrimas das bochechas, um gemido de dor escapando de seus lábios quando cometeu o erro de esfregar a manga da jaqueta no rosto machucado.
Aquilo fez o seu peito inflamar-se mais ainda.
“Quem fez isso com você?”
Ela não o respondeu. Interrompeu o contato visual, encarando os próprios pés. Os cabelos formavam uma cortina em volta dela, barrando-o para fora. Ele chamou o nome dela novamente, mas ela não teve coragem de levantar a cabeça. Não podia falar porque sabia que sua voz falharia. E então o ódio pulsante que queimava no peito de André transformou-se em medo. Porque agora era ele quem batia na porta, e temia que ela não fosse deixá-lo entrar.
“Catarina”
Silêncio.
“Catarina, por favor.”
Abra porta por favor abra a porta Catarina abra a porta abra a porta abra a porta…
Silêncio. E ele se expandia, mais e mais, comprimindo o peito dela, o coração contorcendo e pulando e se encolhendo dolorosamente, porque amor e medo se misturavam dentro dela, fervendo e borbulhando e ameaçando explodir. Ela apertou os lábios fortemente, até que perdessem a cor, lutando para que a explosão não atingisse André. Mas então ele a tocou novamente, e ela derreteu-se, não podendo fazer nada mas deixar as palavras escorrerem como lava quente.
“André…” ela choramingou, a voz falhando como havia previsto. “Eu não quero te envolver nisso.”
“Você não tem escolha. Eu já estou envolvido.”
Ela limpou as lágrimas que ameaçavam cair. Um nó formou-se em sua garganta, e uma sensação de paralisia espalhou-se por seu corpo, uma sensação de quem está fundamentalmente presa dentro de si mesma, como que sua pele fosse uma armadura mantendo-a para dentro. Ela queria falar. Ela queria que alguém a ajudasse a carregar o fardo que lhe pesava as costas. Mas por um momento, parecia ter esquecido-se de como mexer seus lábios. De como produzir sons. Enquanto ela era a única a saber dos eventos daquela noite, de todos os três meses de seu último relacionamento, ela estava no controle deles. De alguma forma mística, manter aquele conhecimento dentro dela o fazia menos real – fazia suas más decisões menos reais.
“Catarina…”
“Foi minha culpa, eu não devia ter… eu não devia tê-lo pressionado… foi só um empurrão…”
Ela fechou os olhos, esperando que o mundo se desfizesse ao redor dela. Mas ao invés disso, ele se materializou – em forma de braços quentes, aos quais ela se agarrou como se sua vida dependesse disso.
[…]
12 de Junho de 2016
5:00 PM
As pontas dos dedos de Catarina formigaram quando o sino da porta soou acima de sua
cabeça. Parada em frente a entrada, os seus olhos escanearam o café, e um arrepio percorreu seu corpo quando eles pousaram sobre as costas largas de André atrás do balcão. Ela passou por ele sorrateiramente, os olhos sorrindo como os de uma criança peralta, e não fez esforço algum para alertá-lo de sua presença. Ainda em silêncio furtivo, uma costumeira onda de contentamento atingiu-lhe ao sentar num canto do café, a qual ela acolheu com gosto. Passou a observar os músculos dos ombros de André se movimentarem enquanto ele preparava um cappuccino.
Ela frequentemente se pegava contemplando a perspectiva de uma vida na qual ela nunca havia encontrado André. Às vezes, temia perdê-lo. Temia quebrar seu coração, feri-lo com sua personalidade inconstante. Mesmo após tantos relacionamentos e caras, Catarina nunca aprendera a nutrir; a sustentar; a guardar. Nunca aprendera a se entregar por inteira, e era por isso que ela tinha tanto medo do amor de André – esse nunca era escasso, nunca falho, nunca tardio. O amor de André pulava pelos dedos entrelaçados, saltava de lábios franzidos, se declarava a cada passo sincronizado pelas ruas de São Paulo. E Catarina, que nunca tinha sido de lugar nenhum, agora era. Ela agora tinha uma casa, casa essa que ela levava, entrelaçada nos dedos, para todo canto que ia. Era isso. Ela era tão de André quanto o Louvre era de Paris, ou quanto as pirâmides eram do Egito. Quando ele segurava suas mãos, ela não sentia borboletas no estômago – ela sentia raízes no seu coração.
Um arrastar de cadeira despertou-a de seus devaneios. André sentara-se ao seu lado, cheirando a café e gordura. Ela estendeu-lhe um sorriso tenro.
“Sabe, eu venho sonhando com esse momento há três anos.”, ele disse, segurando a mão dela por cima da mesa. “O dia dos namorados que eu finalmente passaria do lado de cá do balcão, do seu lado.”
“Esse é o meu maior arrependimento. Ter levado três anos para ver algo tão óbvio quanto você.” Ela abaixou os olhos dos dele. Era também sua maior vergonha.
“Ei. Tinha que ser assim.” André falou, apertando de leve a mão dela. “Tem um tempo pra tudo. Esse era o nosso tempo – e tá tudo bem. Eu estou bem aqui. E você está bem aqui. E eu não trocaria isso por nada nesse mundo.”
Ela mais uma vez viu-se surpreendida pelo quanto podia amar uma única pessoa, o medo que uma vez sentira derretendo- se em júbilo dentro de seu coração.
“Mas e ai? Já decidiu o que quer, amor?”, ele mudou de assunto, e sem nem abrir a boca, Catarina respondeu, o tal do coração cantando – você, você, você.